Senhor Bispo do Porto, violar uma criança não é “asneira”, é crime.


Quando há exposições públicas ou mediáticas sobre violência sexual, há sempre o risco de estas terem um impacto forte na vida dos sobreviventes, especialmente quando se trata de alguém com visibilidade e responsabilidade como é o caso do Bispo do Porto. Em entrevista à TSF, D. Manuel Linda não só afirmou que não se justifica a formação de uma comissão para lidar com casos de violência sexual infantil, ao contrário do que foi decidido na cimeira da igreja Católica, como ainda classificou esta forma de violência como “asneiras”.

Nas suas próprias palavras, referiu que apesar de estarem a reformular a formação contínua do clero, “mesmo assim alguém pode, de facto, voltar a fazer asneiras, é possível; é possível, sempre.”

Classificar como “asneiras” violência sexual contra crianças, revela não só uma profunda desinformação, que é grave e perigosa, como ignora também que este é um crime e é uma violação grave dos direitos humanos, que afeta 1 em cada 5 crianças na Europa.

Como referimos no início deste texto, estas palavras não caem no vazio. Estas declarações têm um peso real e afectam a vida dos homens vítimas de violência sexual. Um dos sobreviventes, que apoiamos na Quebrar o Silêncio, escreveu uma carta aberta a D. Manuel Linda que partilhamos convosco para uma melhor compreensão do peso que a desinformação pode ter.

Carta aberta ao Senhor Bispo do Porto
Senhor Bispo do Porto,

São 4 da manhã. Ontem foi domingo de Páscoa e estou sem dormir depois de ler a sua entrevista em que afirma, com a maior das leviandades, que a Diocese do Porto não vai fazer nada em relação à pedofilia na Igreja, porque não é um assunto, comparando ao disparate que seria o Porto criar uma comissão para a queda de um meteorito. Não durmo depois de o ler, quando diz que até pode voltar a haver “asneiras”.

Pois saiba, Senhor Bispo, que me tira o sono constatar que tudo ficará na mesma para nós, os que temos a vida desfeita pelo abuso que sofremos em crianças. Uns na família, outros – como eu – na sua Igreja, em que não se discutem meteoritos e onde se fazem umas asneirolas.

Deixe-me, para que perceba bem, dizer o que, no meu caso, foi a “asneira “. Foi, no contexto de um retiro para casais, ser levado, por um homem lá colocado para animar as crianças – não sei se padre, seminarista, diácono ou mero animador, para um lugar deserto, onde me despiu e me violou, forçando-me a sentar-me ao colo dele. A “asneira”, como lhe chama, destruiu uma grande parte da minha vida e deixou marcas irreparáveis. De tal forma que reprimi esta memória até há bem pouco tempo. Só há alguns anos me deparei com ela e só há poucos meses consigo falar dela.

Eu sou um dos casos que o porta-voz da Conferência Episcopal disse que eram pouquíssimos e portanto irrelevantes. Eu sou o miúdo violado aos 5 anos que não é um meteorito, porque não interessa agir. Eu sou o caso que se abafa para que um padre da Caparica possa fazer mais um manifesto corporativo contra a difamação dos seus colegas.

Aquilo que a que chama “asneira”, é um crime hediondo. Mas vejo-o mais preocupado com o horário dos hipermercados do que com a entrega dos crimes à justiça.

Se lhe disser que a “asneira”, no meu caso, foi a entrada forçada do pénis de um homem no meu ânus e na minha boca? Assim percebe? Ou continua a não ter tanta importância quanto o hipermercado aberto ao domingo?

Sabe, Senhor Bispo, nós, que fomos violados, não falamos. Somos manipulados e levados a crer que a culpa é nossa. Somos empurrados para esquecer. Temos menos de 10 anos e o ónus da prova é colocado em nós.

Nunca deixei a Igreja, porque acredito num Deus de Amor, do qual o abuso de crianças não faz parte. Mas não acredito num clero que queira viver com a cabeça enterrada na areia, em negação permanente, e que persista em fazer da vítima o culpado por existir.

Consegui formar uma família cristã, à qual não quero ter de contar pelo que passei e, sobretudo, para a qual não quero a Igreja que o Senhor apresenta.

Senhor D. Manuel Linda, em meu nome, em nome de todas as crianças que não tiveram voz, que ainda não têm voz, peço que se agarre à dignidade que ainda lhe restar e que se afaste, demita-se e dê lugar a um novo Bispo, que queira agir e nunca – mas nunca – marcar o domingo de Páscoa anunciando a morte que não passa para cada um de nós.

Um sobrevivente.


Se foi vítima de violência sexual e precisa de apoio contacte-nos, Quebrar o Silêncio – associação de apoio especializado para homens vítimas de violência sexual – 📧apoio@quebrarosilencio.pt 📞 910 846 589 #quebrarosilencio