No segundo podcast sobre violência e abuso sexual, discutimos a importância do jornalismo enquanto ferramenta de informação e abordamos um pouco as suas fragilidades no que toca à informação correta e rigorosa sobre determinadas matérias.
quando se fala em trabalhar temas de violência sexual, isto não é sexo, não são histórias sexuais, é crime
Convidámos Catarina Marques Rodrigues que nos fala sobre a sua dedicação aos direitos humanos por “não suportar injustiças” logo desde muito nova, e como essa forma de ver o mundo a conduziu ao jornalismo. Catarina refere que só fica satisfeita quando recebe “uma mensagem ou um email de uma psicóloga ou de um pai a dizer-me «muito obrigado, este trabalho ajudou-me imenso a ficar esclarecido»”
Atualmente na RTP1, Catarina Marques Rodrigues considera fundamental que o/a jornalista considere duas dimensões quando se abordam temas de violência e abuso sexual. Por um lado, a “dimensão pessoal, que é a dimensão muito própria da pessoa que vivenciou aquele episódio (…) que diz respeito à esfera privada da pessoa.” No entanto, também mantém presente a dimensão pública, uma vez que “são crimes que efetivamente merecem e devem ser conhecidos pelo público. Os jornalistas quando tratam estes temas têm de ter em conta estas duas dimensões. E aqui entra o estabelecimento da confiança (…) mas também o bom senso; tens de saber separar aquilo que deve entrar na história e aquilo que é melhor não entrar.”
a pessoa que estás a tratar não é um número, é uma pessoa. (…) É uma pessoa que precisa de ser protegida
Quando edita as suas histórias, Catarina Marques Rodrigues esclarece que “a pessoa que estás a tratar não é um número, é uma pessoa. (…) É uma pessoa que precisa de ser protegida.” Nesse sentido, enquanto profissional, acrescenta que é necessário “questionar cada linha que escreves (…) Pensar, e não só, na pessoa que estás a retratar, mas também nas pessoas que podem ler, que podem ser pessoas que foram agredidas sexualmente e podem ver aí uma esperança (…) Pode ser uma pessoa que sofreu violência sexual, mas pode ser também um pai, um avô ou um tio. Tu tens de ser o mais honesto e o mais sério possível, para que aquela pessoa fique informada de forma correta”.
Jornalismo enquanto ferramenta de informação e educação
O jornalismo é uma ferramenta fundamental na educação e informação do público, e Catarina Marques Rodrigues aponta que “há uma diferença entre informação e perversão” e que é necessário ter em mente que “quando se fala em trabalhar temas de violência sexual, isto não é sexo, não são histórias sexuais, é crime.”
Recorrer a histórias reais pode ajudar a humanizar, “ouvimos tantos números todos os dias que muitas vezes esquecemos que esses números são pessoas (…) Isso ajuda-te a entender que isto pode acontecer a qualquer pessoa (…). E as histórias ajudam-te a isso. Agora, de facto, isto não é um catálogo, não pode ser tratado dessa maneira.”
todos os dias cometemos erros e reproduzimos estereótipos de género que nos estão incutidos
Catarina Marques Rodrigues refere que antes de ser jornalista “somos todos pessoas. E nós todos os dias cometemos erros e reproduzimos estereótipos de género que nos estão incutidos. (…) o primeiro trabalho que temos de fazer é questionar «Porque é que eu estou a ter este tipo de pensamento?»”
O que falta no jornalismo?
Neste podcast, abordou-se ainda a forma como algumas notícias são escritas quando a vítima é um homem e quais os valores por trás de uma escrita nem sempre imparcial. “Falta informação, sobretudo informação para os media, ou seja, o que é que é abuso, o que é agressão, como é que se deve apresentar o homem, que tipo de preconceitos estão escondidos em determinadas frases que colocamos, o que puxar para título, o que sublinhar. Falta sobretudo informação, falta desconstruir as ideias que nós temos feitas na nossa cabeça. As notícias que existem sobre os homens vítimas são sempre numa perspectiva quase de menorizar o homem.”
As notícias que existem sobre os homens vítimas são sempre numa perspectiva quase de menorizar o homem
Valores tradicionais da masculinidade
Face aos valores que alimentam esta perspetiva, Catarina Marques Rodrigues avança que “é um problema com raízes muito densas porque vem muito da educação que recebemos sobre o que é a masculinidade, (…) sobre aquilo que o homem deve ser e aquilo que a mulher deve ser. E é nesse tipo de preconceito e estereótipos que está o facto de nós tratarmos de uma maneira a vítima mulher e [de outra] a vítima homem.”
“Os homens são sempre vistos como criaturas que precisam mais de sexo, que gostam mais de sexo, criaturas mais sexuais do que as mulheres, que valorizam muito mais o desejo sexual, que estão sempre prontos para ter sexo desde jovens. Portanto ter uma professora a ter sexo com um aluno (…) é visto mais como um elogio por parte dos outros e sorte do que propriamente como um abuso. Se fosse ao contrário, se fosse um professor homem e se fosse uma aluna (…) mais facilmente se definiria como um caso de abuso. (…) Por isso é que muitas vezes, mesmo nas relações de companheiro-companheira, raramente vês uma notícia de «companheira abusou».
Os homens são sempre vistos como criaturas que precisam mais de sexo
Falta de informação em geral
Face ao desconhecimento sobre o que é abuso sexual, a jornalista avança que “as pessoas pensam que abuso sexual é penetração, «a mulher abusou do marido? Como é que ela fez isto? Penetrou-o?» (…) A raíz do problema vem desde o que é agressão sexual, o que é abuso sexual. Não é só penetração, é também coerção, o pressionar muito o outro para ter relações sexuais. “
E para tal, enquanto profissional, Catarina Marques Rodrigues explica que “falta pegar no momento (…) para efetivamente explicar o que é que está por trás.” Para que se compreenda que “não foi um episódio isolado, não aconteceu só com aquela pessoa(…) e perguntar a especialistas o que é que eventualmente fará com que uma mulher ou um homem não revele [que foi vítima de agressão sexual].”