Para o primeiro podcast da Quebrar o Silêncio convidámos Tozé Brito, que em 2017 teve um momento bastante forte no que toca a testemunhos, ao reconhecer publicamente, através da sua biografia, que foi vítima de abuso sexual aos 10 anos. Este testemunho foi também uma oportunidade para trazer a violência e abuso sexual de homens e rapazes para a discussão pública e serviu de base para a conversa deste primeiro podcast.
eu não percebi o que se estava a passar. E isso é o mais aterrador. É que tu passas por estas experiências e não sabes o que se está a passar, não tens conhecimentos que te permitam perceber as marcas que isso te vai deixar e depois não tens com quem falar.
A desinformação a que assistimos é grande, e por vezes não há o reconhecimento de que a criança pode não compreender que está numa situação de abuso. No seu caso, Tozé Brito explica que “eu não percebi o que se estava a passar. E isso é o mais aterrador. É que tu passas por estas experiências e não sabes o que se está a passar, não tens conhecimentos que te permitam perceber as marcas que isso te vai deixar e depois não tens com quem falar.”
Esta desinformação afeta também o desconhecimento sobre o impacto que o abuso sexual pode ter na vida dos homens sobreviventes. “Comecei a ter problemas de ansiedade. (…) Isto criou-me um bloqueio. Sempre que eu tinha momentos de intimidade (…) sentia-me extremamente ansioso e afetava-me completamente o comportamento físico e psicológico, tudo. (…) Naqueles momentos eu regredia 10 anos e voltava ao momento do trauma. Congelava completamente e ficava com níveis de ansiedade altíssimos.”
Além da ansiedade, o homem sobrevivente pode experienciar algumas consequências, como, sentimentos de vergonha e de culpa, baixa auto-estima, auto-desvalorização, dificuldade em ser assertivo, surgimento inesperado de memórias do abuso (flashbacks), questões sobre a identidade e orientação sexual, evitamento de sentimentos associados ao abuso, entre outras consequências.
tu sentes-te violado no sentido em que a tua privacidade, todo o teu espaço, o teu corpo, tudo está em causa nessa altura
Nas sessões de sensibilização realizadas pela Quebrar o Silêncio constatamos também que, por vezes, há uma definição limitada do que é abuso sexual, restringida à penetração forçada e violação, ignorando-se que a violência sexual abrange outras formas. “O abuso pode ser agressão psicológica e ser às vezes mais violento que o físico até. Neste caso foram as duas coisas, foi o conjunto das duas coisas. E realmente tu sais dali muito amachucado, especialmente quando tens apenas 10 anos e não sabes sequer com quem podes falar e o que é está mal.” Tozé Brito, aprofunda a sua opinião sobre a dimensão do que experienciou: “aquilo é um assalto. E tu sentes-te violado no sentido em que a tua privacidade, todo o teu espaço, o teu corpo, tudo está em causa nessa altura. (…) Já basta este choque para tu ficares traumatizado. (…) Agora imagina que uma pessoa depois disto ainda te vem dizer «o menino devia saber muito mais do que sabe, com 10 anos já devia estar…» e eu fiquei a pensar, mais? Mas o que é que me falta? O que é o estará errado comigo? (…) O que eu senti é que a culpa era minha, eu tinha falhado e a culpa era minha. Eu deveria saber mais, devia estar preparado para o que não estava obviamente aos 10 anos. Não tinha sequer noção do que estava a passar.”
Mas como é possível ultrapassar? O apoio técnico e especializado é fundamental para que os homens sobreviventes ultrapassem as consequências e o impacto que o abuso teve na sua vida. Sobre esse apoio, Tozé refere também que procurou ajuda médica e que “a partir daí eu fui percebendo (…) que realmente não havia nada errado comigo.” E apela aos outros homens sobreviventes que “não esperem 26 anos. Porque esta média dos 26 anos é assustadora, quando a gente pensa que em média um homem pode demorar 26 anos a dar um passo em frente para resolver este problema. Isto pode resolver-se (…) desde que as pessoas tenham a consciência de que estão a falar de um assunto que não é tabu e que não pode ser tabu, tem de ser falado, tem de ser conversado.”
O abuso pode ser agressão psicológica e ser às vezes mais violento que o físico até.
Para finalizar, Tozé deixa alguns conselhos. “Para aqueles que têm filhos, é muito importante dizer isto: eduquem os vossos filhos, em termos de educação sexual (…) não estamos a falar de penetração ou de contactos sexuais muito mais avançados. Às vezes basta o toque (…) às vezes as palavras, as coisas que se dizem, tudo isso pode ser traumático, pode ser muito traumático. E se as crianças estiverem minimamente preparadas, para que, se isso lhes acontecer, saberem pelo menos o que está a acontecer, é um passo muito bom.” Para os homens sobreviventes, termina dizendo que “Se estão a viver este problema, se estão a guardá-lo e se ainda não tiveram a coragem de dar o passo de partilhar com alguém, partilhem rapidamente com quem vos possa ajudar.”