Figuras públicas que responsabilizam as vítimas e não os agressores


Casos de assédio, violência e abuso sexual com exposição mediática podem ser oportunidades para informar e sensibilizar o público em geral para estas formas de crime. E figuras públicas, que chegam a milhares de pessoas, podem ser um veículo dessa mesma informação e sensibilização.
No entanto, nem sempre é isso que se constata. Recentemente o ex-vocalista da banda britânica The Smiths, Morrissey, veio a público afirmar um conjunto de ideias que vão contra a ideia de sensibilizar e informar, reforçando exactamente o oposto: a responsabilização das vítimas e desculpabilização dos agressores.

As afirmações em questão.

Morrissey começa por referir que os casos contra Kevin Spacey são ridículos e que a própria definição de assédio e abuso se tornaram demasiado latas. O músico promove também a responsabilização do actor Anthony Rapp, que tinha 14 anos quando o Spacey avançou sobre ele, e questiona o paradeiro dos pais (o que reforça o desvio de culpa), colocando a responsabilidade no menor e vítima.

“as pessoas sabem exactamente o que está a acontecer (…) e elas alinham.”

O músico insiste em especular sobre se o rapaz não saberia o que poderia acontecer e afirma que na sua própria juventude nunca esteve em situações como aquela. Reforça que esteve sempre consciente do que lhe poderia ter acontecido. “Quando estás no quarto de alguém, tens de estar alerta sobre o que pode acontecer. É por isso que não me soa muito credível para mim. Parece que o Spacey tem sido atacado desnecessariamente”.

Sobre as vítimas do produtor americano Harvey Weinstein, afirma que “as pessoas sabem exactamente o que está a acontecer (…) e elas alinham. Depois sentem-se envergonhadas e insatisfeitas. E viram-se e dizem ‘fui atacada, eu fui surpreendida’. Mas se tudo corresse bem e tivessem ganho uma grande carreira, não falariam sobre isso”.

Que impacto tem estas reacções nos sobreviventes?

Quando um sobrevivente partilha a sua história de abuso, é um acto de coragem e um momento de exposição que vai marcar a sua vida. É importante e fundamental que se acredite na sua história, que a sua partilha seja valorizada e reconhecida.
Vozes como a de Morrissey (ou de Cláudio Ramos e Inês Pedrosa) revelam muita desinformação e falsas crenças de quem as profere, promovendo algo perigoso: uma contexto hostil às vítimas.
Estas posições transmitem às vítimas de que não podem nem devem falar das suas histórias de abuso porque as reacções serão negativas, porque serão responsabilizados pelo próprio abuso que sofreram.

Em média, um homem sobrevivente demora cerca de 26 anos até partilhar a sua história e procurar apoio.

Em média, um homem sobrevivente demora cerca de 26 anos até partilhar a sua história e procurar apoio. Propomos um exercício: que se coloque no lugar deste sobrevivente. Imagine-se a viver e a sofrer 26 anos em silêncio, e quando finalmente consegue reunir forças e coragem para partilhar a sua história é recebido com descrença e ataque. O que acha que acontecerá de seguida? Se assistir a este tipo de respostas irá sentir confiança e segurança para pensar em partilhar a sua história?

Um dos objetivos das acções de sensibilização da Quebrar o Silêncio é, aos poucos, diminuir os 26 anos de silêncio. Para tal é necessário que haja informação correcta e rigorosa, o que não constatamos junto destas figuras públicas.
Seria positivo vê-las a assumir uma postura correcta, reforçando o que é importante: a responsabilidade do abuso é sempre do agressor e não da vítima.