V. – 31 anos


“Eu não sei!”

Essa resposta era recorrente em minha vida, em especial quando me deparava com algumas ações que, de forma geral, tinham significados óbvio.

Algumas ações minhas, quando enquadradas em um raciocínio lógico de causa e efeito, não faziam sentido para mim. Um exemplo era um hábito que tinha de olhar compulsivamente para rapazes na rua (geralmente com o mesmo biótipo), ou de seguir vários rapazes desse mesmo biótipo em redes sociais para ficar olhando os corpos essas pessoas.

Se fizermos uma relação de causa e efeito com essas situações o mais obvio é pensar que eu olhava compulsivamente por desejo, atração sexual ou por admiração da beleza.

Quando questionado sobre o porquê dessas ações, eu não tinha resposta, eu dizia: “Eu não sei!”. E, de fato, não sabia explicar porque agia daquela forma. Em 2020, muitas coisas mudaram e essas situações ficaram mais intensas… Quando questionado porque ficava olhando para um rapaz na rua, eu não sabia dizer o que motivava o meu olhar e ao tentar recordar se de facto tinha olhado, não me lembrava de o ter feito.

Com muito esforço, surgiam na minha memória fragmentos de alguém: um braço, uma roupa… era como se minha observação fragmentasse o corpo da pessoa que fiquei obcecadamente olhando.

– Você olhou para o rapaz por que achou ele bonito?

– Eu não sei! Não faz sentido para mim, eu nem me lembro de contemplar a beleza do rapaz, nem sei se ele era bonito de facto…

Quando essas situações aconteciam, eu me sentia muito mal, culpado, sujo… Chegava a chorar por dias, ficava num quadro de profunda depressão. Um certo dia, após passar por uma situação semelhante a mencionada acima e chorar por quase 4 dias, resolvi dizer basta.

Sai do quarto ainda em lágrimas, chamei o meu companheiro e disse: “Eu fui abusado na infância, quando tinha 6 anos”. Contei que não sabia como se davam os abusos, que isso sempre foi apenas um sentimento. Durante a infância, toda vez que via um certo tio, eu sentia que deveria dizer a alguém que ele me abusou sexualmente, mesmo não tendo nenhuma memoria do que ocorreu, era um sentimento.

Partilhei com meu companheiro que o abuso não tinha sido realizado apenas por esse abusador, mas também por outras crianças, que muito cedo minha sexualidade e meu corpo foram expostos. Tinha memórias onde eu estava nu, com outros meninos nus num sótão na casa dos meus avós, meninos mais velhos e mais novos que eu, não me lembrava do que tinha acontecido, apenas tinha essa recordação.

O meu companheiro em todo momento foi acolhedor, e olhava-me com extremo afeto e ternura. Em minha mente não fazia sentido receber aquele acolhimento, porque eu era alguém muito ruim, sujo… Foi nesse momento que resolvi compartilhar o que para mim é o maior factor de culpa. Disse que contaria a ele o que mais me angustiava e que fazia eu me sentir culpado.

No começo da adolescência, pediram que um primo mais novo que eu fosse tomar banho comigo, na ocasião, ele tocou meu corpo e eu deixei que a situação evoluísse. Isso ocorreu algumas vezes. Eu tinha mais maturidade que ele, sabia que aquilo não era correto, mas sentia que deveria permitir, como já havia permitido com outros meninos da minha idade, ou próximos da minha idade, pensava que era algo natural.

Certo dia, estava na casa da minha avó quando esse tio disse: “Qualquer dia desses esses meninos [apontando para mim e para o meu primo], vão dizer que eu tentei fazer coisas com eles”. Não me lembro em que contexto ele proferiu essas palavras, também não me recordo quem estava na casa naquele dia e se o ouviram a dizer isso. Lembro-me apenas de sentir um frio na espinha e entender que meu primo só teve aquela ação porque também foi violentado pelo mesmo abusador.

Eu tinha 13 anos na época e senti-me muito culpado e essa culpa acompanhou-me o resto da minha vida. Desse dia em diante nunca mais tive contactos íntimos com ninguém, tinha medo, receio… Desse dia em diante tudo que acontecia de ruim na minha vida eu associava a esse fato, sentia que era merecedor daquilo porque era uma pessoa ruim e comecei a acolher toda situação que era punitiva, porque no meu imaginário eu não era merecedor de ser feliz.

Lembro que quando contei isso ao meu companheiro eu não esperava ser acolhido, achava que ele iria culpar-me por tudo o que aconteceu, que sentiria nojo e medo de mim, assim como eu sentia e que iriamos romper naquele momento. Para a minha surpresa, ele me acolheu, disse que eu não tinha culpa de nada do que aconteceu, que eu era uma criança. Foi um dia muito especial, de muito amor e acolhimento. Nesse momento ele me disse o quanto as minhas ações que não faziam sentido se encaixavam, que tudo fazia sentido para ele agora.

No dia seguinte encontrei a associação “Quebrar o Silencio” e decidi olhar em profundidade para tudo isso.

Faltam-me palavras de gratidão ao Ângelo e a Filipa, além de serem um ponto de apoio, suporte e reconstrução, vocês se tornaram numa inspiração. Emociona-me ver pessoas como vocês com um propósito de vida tão revolucionário e potente, que de fato reconstrói o que temos como sociedade.

Os processos terapêuticos foram intensos e encorajadores. Por piores que fossem as lembranças que surgiram ao longo do processo, por piores que fossem os sentimentos que tive que encarar, eu sabia que tinha um lugar de segurança, acolhimento e respeito. Foi nesse ambiente que entendi que o meu olhar excessivo para as pessoas tinha associação com a forma que ocorreram os primeiros abusos que sofri. Descobri também o porquê que quando me sentia mal, inferior ou culpado eu tinha a necessidade de consumir pornografia (uma dependência que me acompanhou por muitos anos). Não quero aqui me estender em detalhes dos impactos, mas na potência que encontrei no “Quebrar o Silencio”

Tive impactos profundos em minha vida, retomei paixões antigas, como a escrita e fortaleci novas paixões como o Yoga. Com o apoio psicológico da Filipa fui construindo um reportório próprio de estratégias para lidar com as minhas emoções e sentimentos. Compreendi que o passado existe, que as violências que vivi fazem parte do passado, mas que podem reverberar no meu futuro e que a nova forma com que lido com esse passado que me constitui com um sobrevivente e não como uma vítima. Ter o controlo nas minhas ações, de forma consciente, saber o que me fortalece e me enfraquece foi o maior ganho de todo esse processo. Entendo que não sou uma vítima, que sou alguém que sobreviveu a muitos impactos e que não me resumo a essas sobrevivências, sou muito mais que a sobrevivência, que minha vivência é potente e que ela me traduz.

Hoje, sinto-me renascido, forte e com um caminho gigante pra trilhar. Gratidão a todos que me acompanharam nessa jornada, meu eterno sentimento de respeito admiração!