Ricardo – 31 anos


Os dias são tão diferentes conforme quem os encara… Há dias tão claros, tão serenos, tão luminosos, em que o vento, numa brisa suave, beija nossos rostos, sem autorização, e segue viagem… Nestes mesmos dias, de tanta luz, há quem viva na escuridão, num refúgio de alma, numa caverna construída por si mesmo, dentro de muralhas esculpidas pelo medo e há quem simplesmente não viva… Quando guardamos um segredo, uma marca tão profunda que se funde ao nosso ADN, quase esquecemos de ser quem somos, não é por mal que o fazemos, simplesmente criamos mecanismos de defesa que nos levam a esquecer a nossa identidade… Antes de encarar esta batalha, de um contra um, de mim contra mim mesmo, vivia no medo, constantemente a responsabilizar a criança que fui, a criança que vive magoada no meu passado por aquilo que aconteceu… Mas sejamos francos, como é que uma criança pode ser responsabilizada por uma violação, como é possível deixarmo-nos corroer por uma culpa que não nos pertence? Todas estas perguntas retóricas, que viveram e ainda vivem na minha cabeça, aos poucos foram correndo a minha existência, como se eu não tivesse direito de ser feliz, como se a felicidade fosse algo que não me estivesse destinado… Durante anos anulei-me, magoei-me e magoei outros, pessoas que amei e que deixei que seguissem viagem, por não me sentir capaz de fazê-las ficar na minha vida… Mas como nem todos os dias são iguais, num dia de tempestade senti que me afogava, perdi as forças para segurar o meu barco, onde o refúgio era o oceano bem distante de todos, onde o meu segredo permanecia naufragado nas profundezas de mim mesmo… A tempestade foi tão forte que todo o meu ser estremeceu, vi na loucura uma miragem e no desejo de salvação a cura… A vida sorriu para mim e de forma inconsciente soube que precisava de ajuda e que essa ajuda poderia fazer toda a diferença… Num processo longo, demorado, de feridas abertas, de exploração de memórias, pensamentos, recordações, visões, sensações de repulsa e de autocomiseração, vi-me obrigado a lutar comigo mesmo, contra os meus pensamentos viciantes, as ideias erradas que alimentei ao longo dos anos e contra tudo aquilo que acreditei ser a realidade, numa confusão de mente de quem tenta se proteger de si mesmo. Neste processo, de construção, de sanação, de reaprendizagem, deixei que me guiassem, deixei que a luz entrasse na minha vida e fui capaz, pela primeira vez, de questionar de forma racional tudo aquilo que me aconteceu. Estas questões, estas reflexões, ajudaram-me a iniciar um processo de desconstrução de todas as barreiras e demais defesas por mim criadas… Não é fácil, não é algo que seja feito de um dia para outro, são batalhas diárias num processo de recuperação e de amor-próprio… Contudo, há que acreditar que estes sentimentos nefastos são efémeros e, como tal, dependem de nós para desaparecer, dependem da nossa compreensão dos fenómenos que o desencadearam e da forma como passamos a lidar com essa informação. A ajuda psicológica foi muito importante, foi nessa ajuda que adquiri as armas necessárias para desconstruir barreiras, foi com essa ajuda que aprendi a desenvolver estratégias para conseguir seguir e frente sem me deixar dominar pelos medos do passado… Mas desengane-se quem achar que existe uma receita para o sucesso, existe sim a nossa vontade de mudança, de resiliência, de vencer… Embora esteja visivelmente melhor, após as várias sessões de terapia, não considero a guerra ganha, considero sim que estou destinado a ser colocado à prova todos os dias, em pequenas batalhas diárias, contudo sei que estou e assim me sinto, bem preparado para fazer frente ao que possa surgir no futuro…