Chamo-me Miguel, tenho 50 anos e sou um sobrevivente.
Este é o meu verdadeiro nome. E com o meu verdadeiro nome posso falar da minha história para quem quiser ouvir. Isto que acabei de escrever era algo impensável há cerca de um ano quando iniciei a minha viagem em direcção à paz.
Num dia de desespero e de muita angústia, percebendo que não conseguia viver mais com fardo que carreguei toda a minha vida, e já depois de ter tido conhecimento da Quebrar o Silêncio, escrevi um pedido de ajuda.
Esse pedido ficou guardado nos rascunhos durante algum tempo. Tinha perdido a coragem… Outra vez. Mas a dor continuava… E no dia 5 de Novembro de 2017, carreguei na tecla enter… Tinha enviado… E agora!? O que raio acabaste de fazer?, pensei eu. Passaste uma vida inteira a esconder isso, a não falar disso com ninguém, e agora envias uma mensagem a desconhecidos!?
Para piorar a situação o Ângelo respondeu-me logo no dia 6. Devo ter ficado uma boa meia-hora a olhar para a mensagem com o cérebro totalmente bloqueado. Ainda assim resisti, com alguns subterfúgios que ia arranjando, só tive a primeira sessão a 5 de Dezembro. Mas deixem-me falar um pouco de como vivi estes 50 anos.
O primeiro abuso deu-se quando eu era muito novo, tão novo que não me lembro da idade, mas estava naquela idade em que as crianças têm que se deitar cedo. Estava numa pequena aldeia, onde havia por essa altura uma festa. Quando lançaram os foguetes eu comecei a chorar com medo e assustado. Por isso um primo meu, na altura adolescente, foi deitar-se comigo, segundo ele para eu não ter medo. Passado poucos minutos fui completamente maniatado por ele, a partir daí só sentia dor que contrastava com a voz calma dele a dizer que não fazia mal, que estava tudo bem. Se era normal porque é que doía ao ponto de me fazer chorar. Não me lembro quantos dias permaneci com os meus pais na aldeia. Mas a partir daí, ele e outro primo meu todos os dias me faziam a mesma coisa. Por fim lá foram dizendo que se contasse a alguém, eles diziam que tinha sido eu a pedir, e que os meus pais iam ficar muito zangados comigo. Devo dizer que com isto fiquei aterrorizado pois os meus pais sempre fizeram questão de dizer que eu era um menino muito parvinho, pouco espevitado.
Com isto o meu silêncio ficou garantido.
Pouco tempo depois um desses primos foi viver a convite dos meus pais, para nossa casa. Escusado será dizer o que veio a acontecer todas as noites. Com a agravante que quando o outro primo nos ia visitar eles revezavam-se. Aí a chantagem mudou, diziam que contariam a todos os meus amigos se eu não deixasse.
Com o passar do tempo, assim que se aproximava a noite o meu medo era tal, que chegava a desmaiar. Tentei contar aos meus pais, mas assim que começava a dizer que o meu primo me fazia mal, apanhava ainda por cima, pois era impossível tão boa pessoa fazer-me mal.
Passado um tempo fui passar um natal a casa de uma outra parte da família, onde vivia uma prima que eu adorava. Acontece que numa das noites ela foi até à minha cama e também ela abusou de mim. Foi nessa altura que comecei a acreditar que afinal todos tinham razão, a culpa não era deles. Era eu que tinha algum defeito e que era normal que isso me acontecesse.
Aos meus doze anos esse meu primo saiu de casa dos meus pais. Altura em que os meus pais me mandaram trabalhar para uma panificadora onde conheciam uma pessoa. Como se sabe nesse ramo por altura do Natal há sempre muito trabalho. O que fez com que tivesse que passar lá algumas noites, e ia descansando aos poucos. Numa dessas noites no quarto onde eu ia descansar, fui novamente abusado por duas mulheres já adultas, o que veio consolidar o que eu pensava de mim. Eu não prestava.
A partir desse momento entrei numa espiral de auto destruição. Comecei a consumir drogas muito cedo, não foram raras as vezes em que dei entrada em hospitais com overdose ou coma alcoólico. Saí de casa muito cedo, e comecei a vaguear por todo o lado. Prometi a mim mesmo que mais ninguém me tocaria, aprendi a lutar. Pensado que, com isto, o problema estava resolvido… Não estava. Não conseguia viver comigo mesmo, só serviu para magoar quem me rodeava. Pois achava que se atacasse logo já não era magoado. Mas continuava em modo auto-destrutivo. Nunca fiz um único amigo. Não tendo coragem para me suicidar, um dia desisti de mim próprio e fui viver para a rua. Nessa altura trabalhava numa grande empresa, mas no fim do dia não conseguia voltar para casa. Tomava banho com outros companheiros de rua em balneários públicos, e lá ia eu trabalhar a maior parte das vezes sob efeito de qualquer estupefaciente. Muita gente já reparava que havia algo de errado, mas eu tinha criado uma personagem, e era bom em representá-la. Apenas queria que algo de mal me acontecesse e me levasse à morte. O tempo passou, todas as pessoas com quem me envolvia eram doentias, o sexo com elas causava-me asco.
Só me apaixonei uma vez, mas a dada altura essa pessoa deixou-me. Normal. Voltei a encontrá-la quinze anos depois. Casámos e tivemos uma filha. Mas ainda assim eu não estava a ser bom para elas, pois o meu personagem era uma pessoa má. Até que quatro anos depois tomei conhecimento da Quebrar o Silêncio. A abordagem já vocês sabem como foi.
A primeira pessoa que me recebeu na Quebrar o Silêncio foi o Ângelo, se me perguntarem hoje quais foram as palavras dele, não me lembro. Sei que passado algum tempo disse que eu ia começar a ter consultas de psicologia, e chamou a Dra. Cláudia à sala. Quando ela entrou deve ter acontecido alguma coisa com a minha vista, pois só vi dois vultos, não distinguia feições.
Quando acontece a primeira sessão, a Dra. Cláudia foi esperar-me à porta para nos dirigirmos à sala, nesse momento senti que não era eu que ia com ela, mas sim aquele menino tanta vez violentado e indefeso.
Digo-vos que a partir desse dia a minha vida mudou como eu nunca imaginei ser possível. A Dra. Cláudia, qual arqueóloga, foi quebrando com muito cuidado a armadura de pedra que eu já achava ser perpétua. O seu trabalho tremendo fez com que me sentisse cada vez mais à vontade e, durante esse tempo comecei, a descobrir que o mundo tinha cor, não era só cinzento e negro, que havia pessoas boas, e que no fundo eu era uma delas. Hoje acredito sinceramente nisso. Não tive qualquer culpa do que me aconteceu, fui uma vítima. Mas agora sei que mereço viver. Até porque descobri que estou casado com uma pessoa fantástica que precisa de mim do seu lado, e que me deu uma filha linda que merece um pai em paz. Não me queria alongar tanto, mas acreditem que isto é só um resumo.
Não sei quantas vítimas vão ler este texto, mas se ele servir para uma, nem que seja só uma a querer encontrar a paz, terá valido a pena escrever estas linhas. Na Quebrar o Silêncio vão encontrar respeito, apoio, alguém que vos entende, pessoas que já passaram pelo mesmo. Em Suma NÃO ESTÁS SOZINHO. Agradeço para sempre a todas as pessoas da associação particularmente à Dra. Cláudia que através das suas palavras me fez voltar à vida.
Estarei disponível naquilo que for possível para ajudar.
Bem haja a todos.
Miguel