O meu nome não interessa. Tenho 46 anos e hoje sou capaz de falar de mim, de me abrir com alguns dos que me são mais próximos. Devo esta capacidade a muitos fatores, dos quais um é a Quebrar o Silêncio, que me levou a perceber que não estou sozinho.
Sobreviver a um abuso é tão mais estranho quanto a consciência do que aconteceu esteve escondida e suprimida.
Quero, neste testemunho, explicar o que é uma vida tornada em caos pelo capricho de um homem que entende que o seu prazer se sobrepõe à dignidade da criança que fui e que se destruiu.
Crescer com um abuso que se apagou da memória é crescer como aqui relato.
É sentir-se, desde a infância, culpado e incapaz. Olhar para os pais, para os irmãos, para os amigos, e sentir-se que se está a falhar em qualquer coisa, que não se é suficiente para os outros, que é preciso agradar e não se sabe como. Falho-lhes sem que eles o percebam. Só eu é que percebo o quanto falho, mas não consigo dizer que falha é essa.
É, desde os seis anos, passar noites em claro. Não conseguir dormir por ter medo de um pesadelo que vem todas as noites e que não se consegue explicar. Um pesadelo em que estamos nus com um homem que nos assusta e não nos deixa sair de onde estamos. É sentir que não podemos falar deste sonho a ninguém, porque a culpa de o sonhar é nossa. É ir para a cama e ter medo de dormir, ter medo que o sonho volte. É já não ter seis anos, mas sim vinte, trinta, quarenta, e ter medo da noite.
É sentir a angústia da insuficiência. É sentir o medo de nos despirmos em frente a outros sem sabermos porquê.
É, num período em que se vive sozinho, beber, beber muito para nunca pensar em nada, sem sequer se ter consciência da razão pela qual se precisa tanto de beber para esquecer. Na verdade, para esquecer o que ainda não recordamos.
É enterrar-se no trabalho, nas mais variadas atividades, ocupar o dia, os dias, até à exaustão, esgotar-se a si próprio para se esquecer de si próprio.
É chorar sozinho. Chorar muito sozinho. É, desde muito cedo, procurar lugares isolados e chorar sem saber porquê. É pegar no carro e ir para lugares distantes só para chorar. E nunca saber porquê.
É não gostar de si, mas viver com um sorriso, porque ninguém pode saber. Ninguém pode saber, porque nós próprios não sabemos porque não gostamos de nós. Mas repetir-se todos os dias: tu não prestas.
É não saber o que sentimos quando nos apaixonamos. É construir uma família maravilhosa e ter medo de a destruir. É sentir-se perdido e ter medo de amar. E, por isso, ser-se distante dos que mais amamos, porque achamos que eles merecem melhor.
É conceber o fim da nossa própria vida desde a mais terra infância. Planear o suicídio, tentá-lo, viver na esperança contraditória de que a vida só se cumprirá quando acabar. Mas ter medo de o fazer porque a missão é agradar. É acordar de manhã com pena de ter acordado, é ir na estrada com o secreto desejo do acidente que vai apagar tudo. É ler sobre formas de acabar com tudo. E é fazê-lo durante mais de trinta anos.
É crescer crente e tantas vezes descrer. É não querer aceitar uma tristeza que sinto e não explico no quadro de uma fé vivida. É olhar à volta, ouvir e ler, e ter medo da palavra “culpa”, porque ela está lá sem saber porquê. E, por isso, viver zonas negras nessa fé, mas não as partilhar, por estar sozinho.
E tudo isto na infância, na adolescência, na idade adulta, vivido no mais total isolamento, na mais completa solidão. Sem saber o que é isto tudo, sem saber porquê isto tudo.
É sentir-se perdido quando a verdadeira dor, da perda, chegou. Tentar, mais uma vez, compreender o incompreensível e não conseguir gerir a dor.
É entregar-se à depressão. Viver entupido em antidepressivos, dominado por dores de cabeça que não desaparecem. É viver a espiritualidade com desconfiança. É desconfiar de si porque se desconfia dos outros.
E é, já aos trinta, aos quarenta anos, continuar a chorar sozinho e com medo de mostrar a dor. Por uma razão simples. Porque essa dor não se compreende.
No meu caso, chegou o dia em que tudo se revelou. Uma memória escondida, que se entrevia nos pesadelos, tornou-se vívida de repente, real, assustadora. Uma memória que demorou exatamente 40 anos a manifestar-se.
Foi aos quatro ou cinco anos, foi numa praia, foi um homem de quem se guardava uma boa representação – e como isso dói. Não lhe vejo a cara, mas vejo tudo o resto. Recordo as palavras, a sedução, o toque, o engano, a violência e a vergonha. Irrita-me e fere-me sentir que gostei daquele homem, que pensei nele durante muitos anos sem perceber porquê. Tocava guitarra e com a música seduziu-me. Manipulou-me. Fez-me nunca falar dele. Será real esta memória que chega de repente e me atropela como um camião? Transporto-me para o lugar onde tudo aconteceu e, perguntando aos que lá estiveram sem falar do horror que recordei, descubro que esse homem existiu, que o lugar existiu, que a oportunidade existiu. Foi verdade. Tudo aconteceu. Choro durante dias. Fecho-me durante meses. Peço que me abandonem para não contaminar com a minha sujidade a vida da minha família. Horrorizo-me. Entendo tanta coisa. Mais uma vez tento acabar com a vida. Salvo pela consciência de que não podia fazer isto aos meus. O meu sofrimento não pode ser gerador do sofrimento de outros. A memória chega e o pânico instala-se. Deixo de dormir, choro o terror do confronto com uma realidade que apaguei.
A dúvida é terrível. O gostar que não tivesse acontecido faz com que, todos os dias, me tente convencer de que não aconteceu, não é, não foi, não pode ser.
Mas sei que foi. E sei o quanto me destruiu. O quanto apagou de mim, o quanto fez de mim o abafador das minhas próprias emoções, o quanto me fez viver em medo e em choros não partilháveis. Fugi tanto que fugi de mim mesmo. Alienei-me. Fiz-me o engraçado, o menino que tinha de ser brilhante, que não se podia expor. Fiz-me o profissional de sucesso. Fiz-me o sempre positivo, que cá dentro sabia que não era. Fiz-me o exemplo da autoestima. Fiz-me fraude e engano. Fiz-me a mentira interior da recusa em ver a verdade que me feriu.
Leio e partilho outros relatos e penso tanta coisa contraditória. Os outros sofreram mais, foram vítimas de situações continuadas, terríveis, muito mais violentas. Não tenho o direito de me queixar. Só posso calar a minha dor novamente. Penso que a violência que sofri não vale nada comparada com a dos outros. Esqueço-me outra vez de mim. Esqueço-me outra vez que também tenho direito a chorar. Proíbo-me de sofrer e, por isso, sofro muito mais.
Na solidão, na tortura de me achar incapaz de fazer os outros felizes por eu próprio não ser feliz, no sentimento de viver em encruzilhada por ter gostos e vivências incompatíveis com o que sou e quero ser, no desespero de me esgotar a tentar agradar e sentir que nunca agrado, procurei ajuda. Foi no quadro dessa ajuda que esta memória veio. Abri gavetas fechadas, mexi em zonas para que não queria olhar e a tortura instalou-se. Mas ainda bem que me encontrei na procura desse menino que fui e a quem eu não queria dar colo.
Foi paradoxal. O horror foi acompanhado de uma integração de tanta coisa desconexa. Junto as pontas soltas das insónias, das inseguranças, da máscara que montei na minha vida, das infidelidades a mim mesmo, das sombras negras da minha fé.
Procurei ainda mais ajuda. Partilhei com a Quebrar o Silêncio. Primeiro, em anonimato. Depois, com cara e nome. Senti-me apoiado e percebi que não estou sozinho.
Falei com duas grandes amigas. Elas estiveram cá. Percebi que não é preciso viver tudo sozinho, que talvez não seja culpado. Conversei com outro grande amigo, que me mostra a importância de rir, de não me fechar em mim.
Também dei o passo fundamental que era preciso dar. Partilhei tudo com a minha mulher. Tinha tanto medo de que tudo acabasse, que ela deixasse de olhar para mim com amor, que sentisse que vivia com um perfeito desconhecido. Pedia-lhe para não gostar de mim, porque sempre senti que não presto. Mas ela não podia não saber o que sou e o que sinto. Não podia passar mais anos a quebrar-me ao lado dela sem ela entender. Tenho uma mulher extraordinária. A sua reação revela que fui abençoado com a melhor pessoa ao meu lado. Mas falei com ela porque houve um caminho feito até aqui. E agora posso começar a escrever um futuro ao seu lado.
Todos eles me dizem que este abuso, de que eu não tinha sequer memória, não me define. Que eu sou muito mais do que isso. Agarro-me a essa verdade ainda com fraqueza. Não me define, mas vejo o quanto me marcou, o quanto me destruiu, a fragilidade disto tudo. Dizem que eu sou muito mais do que aquele momento em que fui violado na praia. Serei. Já fiz coisas boas na vida. Mas a vida ao lado, a que ninguém viu, esteve sempre cá. E ainda cá está.
Sinto-me mais capaz de olhar para a frente, mas há muito por fazer, por interpretar, por reconstruir.
Quero ajudar outros. Quero ajudar a que vivamos num tempo e num espaço em que mais nenhuma criança é ferida, em que mais nenhuma criança tem de fugir de si, de se alienar, de ter medo de dormir, de ter medo daquilo com que pode sonhar.
Escrever este texto é bom. Porque sinto que, ainda que sem nome, posso partilhar. E partilhar permite pensar num futuro em que, porque já não me escondo de mim, posso vir a sorrir na vida pública, no espaço dos outros, mas também no meu espaço interior.
Obrigado, Ângelo, ao meu psicólogo, aos que me têm ajudado, às partilhas e textos que tenho lido, à minha super mulher por me começarem a abrir uma nesga de uma janela que deixará, um dia, com tempo e perseverança, deixar entrar luz na minha vida.