Filipe – 34 anos


Na minha infância, fui vítima de três agressões sexuais por parte de pessoas conhecidas e mais velhas, em diferentes etapas do meu desenvolvimento. Estes actos foram cometidos por dois homens, em situações distintas e pontuais; e por uma mulher, de forma continuada. Conhecia-os a todos, uma destas pessoas é família próxima.
Os episódios com os homens, esqueci-me deles, literalmente, tendo eles voltando ao cimo da memória, décadas mais tarde, em que sozinho na cozinha, lembrei-me do que me tinham feito. Só já homem adulto, consegui dar um nome ao que os homens me tinham feito.

O pior, tinha sido o primeiro episódio: com uma mulher da família. Como fui criado em ambiente religioso, para além da vergonha que se alguém soubesse desse segredo, esse pecado iria, mais cedo ou mais tarde mandar-me para o inferno.

Para além de uma infância em terror religioso, na adolescência e nos primeiros anos de adulto, surgiam dúvidas estranhas: será que vou fazer o mesmo a outros? Será que sou pedófilo? Será que sou gay (o meu entorno social não permite esses comportamentos “desviantes”)? Será que me vou transformar numa má pessoa.
Durante anos, em silêncio, lembrava-me do que me tinha acontecido e em silêncio sofria.

Ao longo dos anos via nas notícias que o que me tinha acontecido, ainda acontece a outras crianças e sempre pensava: o que será feito deles? Com certeza iriam ser homens adultos como eu, com os mesmos medos, a mesma vergonha e a mesma culpa que eu. E, claro, nunca podiam falar sobre isso a outros homens.

Durante muito tempo, pensei numa ideia de ajudar outros homens que tinham tido o mesmo azar que eu, porque tinha sofrido tanto sozinho, sem partilhar a minha dor com ninguém, consumido por ideias e dúvidas aterradoras. Havia de fazer alguma coisa. Nessa busca, encontrei a Quebrar o Silêncio.

Apresentei o meu caso e encontrei-me com a Dra. Cláudia, a primeira pessoa desconhecida, a quem expus a minha privacidade mais íntima. Soube-me bem, senti-me muito forte, ao expor-me assim a alguém! Sabia que aquela pessoa estava ali para me ouvir e para me ajudar. Sem complexos, nem avaliações. A Dra. Cláudia foi a primeira pessoa que soube da história toda, de uma vez só. Apenas a minha esposa tinha sabido do que me tinha acontecido vários anos depois de vivermos juntos.Falar sobre o que me acontecera com alguém que não conhecia, foi libertador e empoderador. Perdera a vergonha de uma coisa que não tinha tido culpa.

A convite da Dra. Cláudia, integrei o Grupo de Ajuda Mútua durante vários meses. Durante as nossas sessões semanais, pude expor a outros homens que partilhavam as suas histórias, sem qualquer vergonha. Ouvir aqueles homens que também tinham sofrido em silêncio, foi importante para mim, para começar a poder a viver com o meu passado.

Para mim, aquele local, onde os homens conseguiam falar – a custo, claro – e a exporem-se e serem compreendidos, foram momentos de aceitação, compreensão, força e libertação. Naquelas horas que passámos no grupo, aqueles homens tão distintos – na maneira de ser, estar, vestir, nas profissões, nos passados pessoais e académicos, juntavam-se ali, por questões de um passado terrível, para poderem dialogar.
É complicado para um homem falar destas coisas. É tabu! Dos mais complexos e mais fechados na nossa sociedade. Um homem tem de ser forte! E se foi vítima, “é porque sempre foi maricas”; “se deixou, é porque gostava”, etc. E isso faz-nos viver vidas de solidão.

Este grupo fez-me aprender com a experiência de homens mais velhos, que sofreram imenso e que tiveram as mesmas questões que eu. Ouvir e reflectir, para poder compreender, respeitar e ajudar. Cada semana, depois das sessões, depois de ouvir aquelas histórias trágicas, sentia-se no ar a força e a esperança daqueles homens que perderam o medo e que ali debitavam o que tinham escondido durante décadas. No grupo somos como uma família que se une numa tragédia comum, mas que se respeita e se compreende.

Após as sessões, consegui encarar aquilo que me tinha acontecido de outra maneira. Tornei-me melhor pessoa e mais forte. Mais atento. As sessões levaram-me a pensar e a repensar as coisas, o mundo e tudo aquilo que me tinha passado. O que antes eram memórias que tentava esquecer a custo, são agora memórias do meu passado que lá estão e aprendi a viver com elas e agora já não me deprimem, nem me fazem mal.

Tenho tudo a agradecer ao Ângelo por ter iniciado este projecto e àqueles homens gigantes que semanalmente partilham as suas histórias e que, naquele círculo, quebravam as barreiras do silêncio. Este projecto é importantíssimo, crucial na nossa sociedade, onde estas coisas são tabu, se não são mesmo o tabu supremo, mas mais crucial ainda na vida dos sobreviventes.
À associação, ao Ângelo, aos homens sobreviventes, o meu eterno obrigado. Sou melhor pessoa hoje, do que alguma vez fui!

Deixo uma palavra de encorajamento a quem tenha dúvidas ou medo: quando chegámos, na primeira sessão, todos tivemos medo. Mas, nas sessões seguintes, criámos um grupo forte, onde tínhamos a oportunidade de falar e crescer em conjunto.
Se é homem e foi vítima de abuso, fale! Quebre o silêncio!


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