Desde os meus 19/20 anos que a minha vida tem sido sair do armário, de forma consciente e activa. Isto é, conhecer-me, assumir-me, e aceitar-me. É um processo constante, e por vezes muito cansativo, obriga-nos a lidar com as coisas que nos incomodam, muitas vezes aquelas que não gostamos ou não gostaríamos de reconhecer em nós, como as nossas contradições, as nossas falhas, e aquelas características que dão muito trabalho a mudar. Obriga também a reconhecer as nossas fraquezas, ou melhor dizendo, as nossas vulnerabilidades. Sair do armário é lidar com isto tudo, de frente, é sair da penumbra para a luz.
Há já 10 anos que estou neste processo, e o ano passado, quando senti que o abuso era uma das questões que tinha que enfrentar e resolver (livrar-me desta bagagem pesada), deparei-me com a Quebrar o Silêncio. Creio que uma partilha no Facebook foi o suficiente para eu encontrar a associação. Li alguns testemunhos, mas um em particular foi decisivo, era o que falava sobre a sua experiência de abuso não estar “à altura”, ao mesmo nível, ou ser digna/passível de ser considerada abuso. Foi isso que sempre que tentei procurar ajuda, mesmo sem saber como, ou com que palavras, ou sequer sem saber recorrer à palavra abuso, foi sempre isso que me fizeram sentir. Então o problema só podia ser meu, e consequentemente a culpa do que eu sentia só podia ser minha.
Depois veio a iniciativa, entrar em contacto. Trocar emails, o primeiro que escrevi levou quase 3 meses a ser escrito, tamanho era o desconforto e a dificuldade em relembrar e arranjar vocabulário para descrever aquilo que eu sempre tive tanta dificuldade em compreender.
Depois veio a primeira resposta da Quebrar o Silêncio. E automaticamente criou-se um espaço seguro, mesmo que virtual. Li o email duas vezes, em dias diferentes. Naquele email tive mais apoio, legitimação das minhas emoções e informação sobre o que se passou do que todos os anos até então.
Desde então foi ficando mais fácil, ou menos difícil…
As sessões realizadas com o grupo de ajuda mútua foram (quase) sempre pesadas. Mas ao fim de alguns meses, felizmente, aquele lugar seguro começou a ficar menos pesado. Ao fim de alguns meses comecei a deixar de ser de vítima e passei a ser sobrevivente. Não pelo mediador o dizer em todas as sessões, mas porque finalmente comecei a compreender o que se passou, porque finalmente tinha vocabulário para explicar, e porque, independentemente das experiências de cada um, aquele espaço seguro mostrou-me que quase todos sentimos o mesmo, as mesmas coisas, as mesmas emoções, os mesmos medos, mesmo vindo de sítios diferentes. O respeito e o apoio partilhado entre todos foi verdadeiramente transformador.
No meio deste processo foi possível iniciar também com a Quebrar o Silêncio o acompanhamento psicológico individual. Neste momento aquele exercício de introspecção semanal ganhou um novo fôlego, obrigando-me a processar, estruturar e verbalizar as coisas que me passavam pela cabeça, como os medos, as dúvidas, as sabotagens, mas também as conquistas.
O acompanhamento psicológico individual foi um confronto muito directo comigo mesmo, e que me obrigou a trabalhar para construir a pessoa mais assertiva que sou hoje.
Um pouco como o nosso corpo, temos uma estrutura óssea que nos suporta, mas ela só funciona com os músculos. Sinto que o grupo de ajuda mútua construiu uma estrutura, mas o acompanhamento psicológico individual permitiu trabalhar uma musculatura que me permitisse caminhar, e seguir em frente.
Quero deixar o meu agradecimento à Quebrar o Silêncio, à pessoa que organiza o grupo de ajuda mútua, e que foi o meu primeiro contacto nesta nova jornada, à profissional incrível com quem realizei o acompanhamento psicológico individual, e a todos os homens, corajosos, que me permitiram crescer um pouco mais, mais livre para ser eu próprio.
O mais incrível deste processo é que foi mergulhando no medo, no desconhecido e na dor de lidar com o abuso, que me libertei do peso que tinha na minha vida, de todas as formas directas e indirectas que todos sabemos tão bem, infelizmente. Ele não desapareceu, mas ao sair da sombra permitiu-me compreender melhor a sua dimensão, e o seu impacto na minha vida. A liberdade é sentir que não sou dominado de forma clara ou imperceptível pelos abusos. E poder agir com esse conhecimento é libertador e capacitador, pois permite viver a vida de forma mais clara, conhecer-me melhor, conhecer melhor os meus limites, respeitar-me mais e exigir mais respeito.
A Quebrar o silêncio está de parabéns pelo contributo que dá à vida de todos os homens que sofreram alguma situação de abuso, e também todos os homens, que quando encontram o tempo de procurar ajuda (vamos sempre a tempo de procurar ajuda, e a melhor altura para o fazer é quando a pessoa sente que é altura de o fazer) abordam a associação, e com essa coragem deram o primeiro passo para deixar de ser vítimas e virem a ser sobreviventes.