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19 de Março de 2023

Dia do pai: quando o próprio pai abusa sexualmente do filho

Para muitos, o dia do pai pode ser uma data para celebrar. No entanto, para os homens e rapazes que foram vítimas de abuso sexual este dia pode ser extremamente doloroso. A realidade é que na maioria dos casos de violência sexual contra crianças o abuso acontece na própria família, e muitas vezes o abusador é o próprio pai.

Como poderá imaginar, para a criança vitimada esta é uma experiência bastante complexa, dolorosa e confusa. Para estas crianças pode haver uma dualidade de papéis difícil de gerir. Por um lado, o pai é a figura de referência que deve proteger e cuidar da criança, por outro o pai é quem abusa sexualmente dela e que provoca dor, desconforto, entre várias outras consequências. Face à complexidade desta situação, a criança pode experienciar sentimentos contraditórios relativamente à relação que tem com o progenitor e acabar por ter um relacionamento de amor/ódio com o pai.

Além do impacto devastador do abuso sexual, estas situações também podem afetar a forma como a criança vai relacionar-se consigo própria, mas também com as outras pessoas. Se o próprio pai cuida em certos momentos, mas noutros abusa sexualmente, que comportamentos poderá a criança esperar das outras pessoas? Será este o relacionamento “normal” que os adultos têm com as crianças? Estas são algumas das questões que as vítimas podem interiorizar e integrar como normais à medida que crescem.

No caso de João (nome fictício), um sobrevivente de violência sexual na infância, ele refere que «fui abusado pelo meu pai quando tinha entre 4 e 6 anos de idade. Depois de tentar suicidar-me 24 anos depois, decidi que precisava de procurar a ajuda que desde sempre senti que não merecia.» Neste caso em concreto, João indica ainda que «houve muita manipulação e sedução inteligente no meu abuso. Era apenas um jogo que o meu pai tinha comigo e tudo era como se fosse uma brincadeira ou afetos. Não era a história de um estranho que me violentou de forma agressiva na rua. Era tudo feito em casa e em segredo no meu quarto, e era tudo muito confuso, e por isso senti que não merecia ajuda.»

Voltando a esta efeméride, é compreensível que para estes sobreviventes o 19 de março seja um dia que os relembra do abuso que sofreram e que por isso é bastante difícil de gerir. Estes homens não tiveram um pai que os protegeu, que cuidou deles e que por isso mereça ser celebrado. Os pais destes homens foram quem, desde muito cedo, abusou sexualmente dos próprios filhos e, em muitas das situações, durante vários anos. Os sobreviventes podem ter ultrapassado o impacto traumático do abuso, mas muitas vezes a família não tem conhecimento do abuso. Assim, para preservar a harmonia familiar e também porque receiam que ninguém acredite na sua história, estes homens mantêm uma relação com o pai. Pode ser meramente cordial, mas não deixa de ser um contacto regular com o abusador.

No trabalho que fazemos na Quebrar o Silêncio com homens vítimas de violência sexual, sabemos como há determinadas datas que são problemáticas. Num esforço de sensibilizar o público em geral sobre abuso sexual, é importante que se comece a falar cada vez mais destas matérias e da profundidade e extensão que têm na vida das vítimas. Se, por um lado, o dia do pai é motivo de celebração para muitos, para outros não o é de todo.