Carta aberta: ser sobrevivente de violência sexual


Hoje não estaria vivo se não tivesse procurado ajuda. Demorei mais de 20 anos até fazê-lo, e na altura já tinha mais de 30, mas foi a melhor decisão que tomei na vida. A verdade é que sem o apoio especializado da Survivors Manchester teria acabado por saltar de uma ponte, para a frente de um comboio ou teria concretizado uma das mil ideias que surgiam todos os dias na minha mente. Esta era a minha realidade. O meu quotidiano era frequentemente assaltado por memórias inesperadas do abuso e por pensamentos suicidas. Vivia num ciclo extenuante sobre o qual não tinha controlo e que me asfixiava cada vez mais.
Hoje, encontro-me no espectro oposto dessa agonia constante e vivo uma vida feliz, estável e sinto-me imensamente concretizado por saber que, por ter fundado a Quebrar o Silêncio — uma resposta de apoio para homens que, como eu, foram vítimas de violência sexual —, criei as condições para que dezenas de outros sobreviventes tenham o apoio especializado que merecem para ultrapassar as consequências desse trauma.

Procurar apoio não é uma decisão fácil e é um verdadeiro ato de coragem. Na altura em que o fiz, senti que estava a exigir de mim mais força do que alguma vez teria. A cada semana que passava pensava em desistir do acompanhamento porque acreditava que não era possível melhorar. Questionava-me se aquele não seria o meu estado para toda a minha vida. E o mesmo acontece com os sobreviventes que procuram o apoio da Quebrar o Silêncio. Quando chegam até nós, estes homens têm todos algo em comum: não reconhecem em si a imensa força, perseverança e coragem que têm. São verdadeiros resistentes que encontraram diferentes estratégias e meios para lidar com a dor que carregam em silêncio há anos e até décadas, e que começam uma nova fase dessa luta.

Procurar apoio especializado é a resposta para poder ultrapassar o impacto que o abuso teve na sua vida. Não é fácil encarar de frente um trauma que afetou toda a nossa vida. Mas não será uma luta maior do que a que tem tido todos os dias. A verdade é que a vida de um sobrevivente é de uma batalha constante, de uma resistência diária que parece não acabar. Todo o sobrevivente sabe do que falo, deste estado de guerra connosco próprios e com os outros. É um estado que acaba por ser interiorizado, naturalizado e que muitas vezes somos levados a acreditar que faz parte da nossa forma de ser. Mas não tem de ser.

Um sobrevivente é alguém que teve a vida interrompida por um trauma. Na maioria dos casos podemos falar mesmo de uma infância interrompida, negada e negligenciada. A vida de cada sobrevivente pode ser descrita como uma odisseia; cada dia é uma vitória contínua de batalhas colossais. É uma viagem onde o sobrevivente é o herói, mas não se reconhece como tal e se vê, sim, como o responsável pelo abuso de que foi vítima. Nesta odisseia, muitas vezes o sobrevivente vê-se a si mesmo como o vilão desta história, como se fosse a pior pessoa do mundo. No final do processo do acompanhamento, é extremamente gratificante ver homens transformados, cujas vidas foram resgatadas. Homens sobreviventes que reconhecem a viagem epopeica que fizeram e que estão livres do trauma que assombrou as suas vida até então.

Enquanto sobrevivente que fala para outros sobreviventes, quero que saiba que a culpa e responsabilidade do abuso não foi sua. Quero que saiba que o único responsável foi o abusador e quero que saiba não está sozinho.
Pode contar com os serviços de apoio especializado da Quebrar o Silêncio, que são gratuitos e confidenciais.
📧 apoio@quebrarosilencio.pt 📞 910 846 589

Assinado por Ângelo Fernandes, fundador da Quebrar o Silêncio.