André tinha 10 anos quando dormiu pela primeira vez em casa do “tio emprestado”


O melhor amigo do pai do André (nome fictício) era como o tio que nunca teve. Sempre que lá ia a casa levava um brinquedo ou um doce. Bem-disposto e alegre, as suas visitas significavam que o serão seria garantidamente divertido.

André recorda-se perfeitamente do dia que sentiu o “tio” nu na cama. Essa memória ficou consigo durante anos.

André tinha 10 anos quando dormiu pela primeira vez em casa do “tio emprestado”. Nesse dia o “tio” exibiu filmes de terror à noite e quando o André demonstrou medo de dormir sozinho o “tio” convidou-o a dormir consigo para o proteger. André recorda-se perfeitamente do dia que sentiu o “tio” nu na cama. Essa memória ficou consigo durante anos.

Para muitos sobreviventes homens, ter uma erecção ou ejacular durante o abuso aumenta os sentimentos de vergonha e de culpa, alimentando o seu silêncio.

Com o passar do tempo, o “tio” foi avançando na forma como se relacionava com André. Além dos filmes de terror, ia mostrando filmes pornográficos e exibindo-se cada vez mais quando se encontrava excitado. André recorda-se que o “tio” o masturbava e que depois pedia o mesmo em retorno. Para o André, o facto de ter tido erecções durante esses momentos significava, para si, que estava a consentir o abuso sexual e que por isso “aquela situação” não era de todo abuso. Não podia ser! Para muitos sobreviventes homens, ter uma erecção ou ejacular durante o abuso aumenta os sentimentos de vergonha e de culpa, alimentando o seu silêncio.

Apenas 16% dos homens consideram que foram vítimas de abuso sexual

André cresceu a acreditar que tinha sido o culpado, porque ele próprio tinha pedido para ir dormir com o “tio” quando tinha medo. E que só podia ser culpado porque se lembrava de ter tido erecção e até momentos de prazer. Devido a esses sentimentos, André “só” podia ser o único culpado pelo abuso sexual e aquilo por que passara não era realmente abuso. Este é um sentimento comum entre os homens sobreviventes. Na realidade, apenas 16% dos homens consideram que foram vítimas de abuso sexual (Widom, C.S. & Morris, S. – 1997).

André sentia-se como único responsável e a “pior pessoa do mundo”

Tal como a maioria dos homens sobreviventes não partilha essa informação com ninguém (Holmes, W.C., & Slap, G.B. – 1998), André não falou com os pais sobre os que se passava nas dormidas em casa do “tio”. Ele próprio sentia que ninguém iria acreditar que o “tio” – alguém tão bem-disposto e o melhor amigo do seu pai – pudesse ser culpado de algo tão mau e acabou por manter para si o que se passava. Afinal de contas, com os seus sentimentos de culpa André sentia-se como único responsável e a “pior pessoa do mundo”.

Os rapazes sentem-se menos à vontade para partilhar com alguém no momento em que o abuso sexual ocorre

André não está sozinho. De uma forma geral, os rapazes sentem-se menos à vontade para partilhar com alguém no momento em que o abuso sexual ocorre (Paine, M. L., & Hansen, D. J. – 2002). Face a esta realidade países como a Austrália chegaram à conclusão de que é necessário um esforço considerável para educar os homens a se manifestarem após o abuso sexual e que é necessária mais publicidade para dissipar os mitos sobre a violência sexual masculina (Davies, M & Rogers, – 2006).

Durante anos acreditou que qualquer pessoa que se aproximasse de si o iria magoar e andava constantemente desconfiado dos outros.

Foram precisos anos para o André reconhecer que tinha sido vítima/sobrevivente de abuso sexual na infância. O agressor tinha-o manipulado sabiamente de modo a que a culpa e a vergonha fossem paralisantes e André passasse décadas em silêncio. André acabou por conseguir redireccionar a culpa e vergonha para o “tio” e compreender que havia sido vítima/sobrevivente quando tinha 10 anos. No entanto, ainda assim passou a recear as relações com outras pessoas. Durante anos acreditou que qualquer pessoa que se aproximasse de si o iria magoar e andava constantemente desconfiado dos outros. Sentiu que o abuso tinha destruído a sua auto-estima, acreditava que não tinha qualquer valor e que não era merecedor de amizades ou do amor dos outros.

Foi necessário procurar apoio especializado para André conseguir reconhecer que não teve qualquer controlo ou culpa sobre o que lhe tinha acontecido e conseguir sarar as consequências resultantes do abuso sexual.