A responsabilidade é sempre do agressor e não da vítima


Culpabilizar e responsabilizar as vítimas é perigoso. É uma reacção que silencia as vítimas e alimenta um dos principais receios sentidos pelos sobreviventes: que ninguém vai acreditar na sua história.
A responsabilização das vítimas e a consequente culpabilização das mesmas é uma das razões pelas quais os homens demoram cerca de 26 anos a procurar apoio após o abuso.

Nas escolas trabalhamos para sensibilizar os alunos sobre a violência e abuso sexual, e um dos pontos que focamos é que a responsabilidade é única e exclusiva do agressor. No entanto, isto não parece ser tão óbvio para algumas pessoas que insistem em subverter de quem é a culpa.
O que assistimos hoje, com as reacções às acusações de Anthony Rapp contra Kevin Spacey, é o foco na desacreditação da vítima. Há um desviar do que é importante reter: o agressor é o único culpado. Relativamente à vítima, o foco devia estar no seu bem-estar, na valorização da sua força e coragem em partilhar publicamente a sua história.

Figuras públicas

Vozes que afirmam “quem nunca” e que responsabilizam um jovem de 14 anos, demonstram uma desinformação grave e que apenas prejudica todo o processo vivido pelos sobreviventes. Além de desinformadas (basta ler o artigo 171.º “Abuso sexual de crianças” do código penal), alimentam mitos e preconceitos, e contribuem para solidificar ideias erradas sobre o problema da violência e abuso sexual.

(…) todos nós conhecemos miúdos de 14 anos, não estou a defender mas estou apenas a contar uma realidade, e que sabem mais da vida do que eu, seguramente. Seguramente. E vão a lugares onde eu nunca estive e têm mais vida do que eu. Não faz disso melhores nem piores. Faz de pessoas diferentes, faz com que não possamos julgar todos pela mesma bitola pelo facto da idade. – Cláudio Ramos

Vozes públicas, com expressão mediática, como Cláudio Ramos ou Inês Pedrosa, têm uma responsabilidade acrescida e deveriam, assim, ter um cuidado maior nas suas contribuições. As afirmações de Cláudio Ramos colocam novamente a responsabilidade na vítima, desvalorizando o abuso que sofreu e culpabilizando-o ainda pelo que aconteceu. A escritora Inês Pedrosa refere que “Nunca ninguém se embebedou e teve um engate mal sucedido: todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. Deixa lá, Kevin Spacey.”, como se o “engate” de um adulto com um jovem de 14 anos possa ser caracterizado de algo aceitável, natural de acontecer e por isso, possa ter sido um “engate mal sucedido”.

A responsabilização da vítima era comum em 1914. Na altura, o criminologista italiano Raffaele Garofalo afirmava que as vítimas podiam provocar com o seu comportamento um ataque criminal. Mas quando se iniciaram os primeiros estudos relacionados com vitimologia, por volta de 1949, essas noções foram desconstruídas e actualizadas para aquilo que deveria ser claro de entender actualmente: que o agressor é o único responsável e culpado pelo abuso.
Lamentamos constatar que em 2017 ainda haja linhas de pensamento datadas e perigosas. Estas posições reforçam o trabalho que falta fazer.

Quando o agressor é uma cara conhecida

A dificuldade que algumas pessoas têm apresentado em ver Kevin Spacey como um agressor passa pelo facto de apreciarem Spacey enquanto actor. Esta dificuldade observa-se também nos casos em que o agressor não é figura pública/mediática, mas sim alguém conhecido e bem estabelecido na comunidade.
Em cerca de 90% dos casos de abuso o agressor conhece a criança. E para surpresa de muitas pessoas, este agressor não passa o seu tempo a seduzir crianças, mas sim a seduzir os adultos. Esta relação que o agressor alimenta cuidadosamente com os outros e com a comunidade é uma estratégia para garantir a sua impermeabilidade. No caso de a criança contar a alguém o que aconteceu, as relações que o agressor andou a fomentar ajudam a desacreditar a vítima. Tal como está a acontecer com o caso de Anthony Rapp.
É fundamental acreditar nas vítimas, compreender o seu silêncio e valorizar a coragem e a força necessárias para partilhar a sua história. À medida que as crianças crescem vai diminuindo a probabilidade de partilharem com alguém a história de abuso. Uma da razões para tal acontecer é o receio de serem desacreditadas.

Ao observamos as reacções ao caso de Anthony Rapp não é de admirar que os homens sobreviventes demorem 26 anos desde o abuso até ao momento que partilham e/ou procuram apoio. Por isso é tão importante não esquecer esta verdade simples: a responsabilidade é sempre do agressor e não da vítima.